caminhando para um abismo como Civilização
Assisti ao novo filme da Cinderela, que está sendo exibido na
plataforma Amazon Prime Video. Confesso que fiquei horrorizada.
O conto de fadas que atravessou os séculos e encantou milhões
de crianças, foi transformado em uma grande propaganda
ideológica, na qual nem a fada madrinha foi poupada.
Todos os elementos da anterior narrativa, repleta de símbolos
virtuosos e que falava de amor, doação, renúncia, entrega,
generosidade, fé e esperança, heroísmo e senso de dever,
cavalheirismo e feminilidade, foram subtraídos da história.
Agora, Cinderela é uma jovem ambiciosa e feminista, que deseja
vencer na vida a qualquer custo, como modista. É debochada,
contestadora e impetuosa. Seu sonho é alugar a loja que se
encontra vazia, e transformá-la em uma boutique de roupas, no
vilarejo em que reside. Diz coisas do tipo:
“Se posso dar à luz e administrar um lar, por que não posso gerir
um negócio próprio?”
A madrasta não é tão perversa assim… afinal, uma mulher que
ficou viúva de dois maridos, e tem duas filhas e uma enteada para
sustentar, precisa arranjar-lhes bons casamentos, a fim de que
tenham o futuro garantido. Dá conselhos de sedução às jovens e
flerta com o vizinho.
O príncipe é apresentado como um jovem idiotizado e totalmente
alheio às funções que deve desempenhar, rodeado de amigos tão
histriônicos quanto ele próprio. Questiona a sucessão, e dá
ordens ao rei. Sente-se exausto pelo exercício de suas atribuições
reais, e chega a dizer que Deus é injusto com ele, pois sua vida é
muito difícil.
A rainha é fastiada e aborrecida com seu papel, ao mesmo tempo
em que se mostra condescendente com a atitude
descompromissada e mimada de seu filho. Desdenha do rei, a
quem quer dominar. A princesa, irmã do príncipe, é petulante e
autorreferente como o irmão, e o rei só ganha deles na base do
grito e da ameaça.
As irmãs de Cinderela, ao menos, permanecem insuportáveis.
As músicas do filme trazem mensagens do tipo: “você pode fazer
o que você quiser”, “você pode ser quem você sonhar”, “não deixe
o mundo formatar você”, “o que vale é o que você pensa sobre si
mesmo”. Ideologia pura, travestida de autoajuda.
A própria postura de Cinderela é insolente e desafiadora, e seu
linguajar é chulo e repleto de gírias. Nada nesse filme é ofertado
de graça, nenhum afeto é genuíno e desinteressado. Em todas as
relações e cenas, as pessoas obtém algum ganho, que faz com
que permaneçam onde estão.
Cinderela chega a vender um vestido para o príncipe, na aldeia,
em uma ocasião em que ele está disfarçado de plebeu. Ao
convidá-la para o baile, o rapaz precisa antes assegurar-lhe que lá
haverá muitas clientes em potencial, para suas criações, a fim de
que a mesma aceite o convite.
E o que dizer do “fado madrinho”? Uma drag queen, vestida de
amarelo, que providencia um terninho azul para Cinderela ir ao
baile, em um primeiro momento, já que ela quer ser “empresária”.
Como ela discorda da vestimenta, coloca a moça em uma roupa
de gala.
O discurso feminista prossegue, com Cinderela dizendo ao
príncipe que não quer viver trancada em um palácio, que quer
trabalhar fora, que esse papo de casar não está com nada, que
quer ser independente… Totalmente Meghan e Harry, e o fim da
história lá do Reino Unido nós já sabemos qual foi.
Os contos de fadas foram inventados como uma forma de
transmissão de ensinamentos, de geração para geração, a
respeito de valores e virtudes, para as crianças desde a mais
tenra idade, de um modo compreensível para estas. Ao ouvirem
sobre reinos, príncipes, princesas, heróis, bruxas, fadas, reis e
rainhas, os pequenos vão decodificando o bem e o mal, o certo e
o errado, na vida dos seres humanos.
Acontece que testemunhamos, hoje, com muita perplexidade, a
total desvirtuação destas fábulas, as quais passaram a ser
impregnadas das ideologias e dos discursos do momento. Se
antes, estes permaneciam preservados em suas narrativas,
atualmente, deixaram de servir de base para a formação,
transformando-se em instrumentos de perversão do pensamento,
desde a infância; nem as crianças são poupadas.
Pensemos o seguinte, por exemplo: se Cinderela não é
necessariamente boa, o bem e o mal estão automaticamente
relativizados. Assim, a madrasta também deixa de ser má, mesmo
com todas as demonstrações de egoísmo, maledicência e inveja,
e tudo está justificado pela vida difícil que leva.
Se o príncipe não é forte, viril e protetor, não é um homem ciente
de suas obrigações, põe-se em xeque a masculinidade. Se a fada
não é modelo de fé, esperança, generosidade e beleza, ela não
representa nosso anjo da guarda. Logo, nossa capacidade de
acreditar em Deus e na Humanidade começa a ruir.
Pouco a pouco, todos os critérios objetivos de avaliação de
virtudes e de símbolos são diluídos, nessa versão bizarra de
Cinderela. O mesmo aconteceu com versões recentes de Alladin
e de A Bela e a Fera. Jordan Peterson, o famoso psicólogo
canadense e autor de best sellers, costuma utilizar os símbolos
extraídos dos contos de fadas, para exprimir virtudes, desde
sempre almejadas pelos homens.
A civilização passava tais virtudes adiantes, por meio de seus
mitos, fábulas, novelas e Histórias, tamanha a importância desses
modelos, ali contidos, para toda a Humanidade. Infelizmente, a
modernidade acabou com isso: não há mais modelos ou
exemplos a serem seguidos, no campo da existência. Como diz a
música do filme Cinderela – cada um pode ser o que quiser.
É por essas e outras que estamos caminhando para um abismo
como Civilização, vivendo uma guerra espiritual entre o bem e o
mal sem precedentes. Por mais que já tenha o mundo
atravessado crises civilizacionais terríveis, os critérios do que
seriam o bem e o mal estiveram sempre preservados e eram
claros.
É preciso refletir muito sobre o que se passa com a Humanidade,
e em que ponto o bem e o mal tornaram-se tão relativos, a ponto
de comprometer-se até mesmo a narrativa de um singelo conto de
fadas. Como nos dizia Eric Voegelin, ninguém é obrigado a
participar da loucura da Civilização, mas todos somos obrigados a
manter a ordem em nossas vidas, apesar do caos externo. Os
contos de fadas, antigamente, sinalizavam-nos um caminho para
chegarmos a esse fim.
Erika Figueiredo. Promotora de Justiça, escritora, mãe, cristã e conservadora. Fala de história, filosofia, política e direito
Fonte: jornaldacidadeonline.com.br